5as de cura... pela palavra (com versão áudio) | Alexandra Marques


Estou em paz com a chefia que me violentou e, estranhamente, estou a ler o 1984 pela primeira vez. Perguntam vocês: duas afirmações tão distintas numa mesma frase, isso não é igualmente estranho? Respondo: não, não é estranho, porque ambas remetem para o mesmo assunto - o medo.

Começo pelo livro: ainda estou no início da leitura para qualquer tipo de análise literária, nem é isso que pretendo. O que realmente importa contar é que foi um livro que me pediu insistentemente para ser lido. Gosto de acreditar em sinais e coincidências, aliás, acredito que são indicadores de que estamos no caminho certo. A determinada altura, em pesquisas de títulos que fazia no âmbito da minha profissão de Bibliotecária, várias foram as vezes em que "Orwell" e "1984" me surgiam no meio das respostas a essas pesquisas. Noutro momento, em arrumação da colecção de literatura, lá me apareceu o 1984, encontrei até uma adaptação em B.D. Por fim, chegou ao meu local de trabalho um exemplar novo. Quando o vi, até desabafei com uma colega que os sinais eram evidentes: tinha que o levar para ler. De alguma forma, aquele livro estava a ser posto no meu caminho para o conhecer. Curioso até ser no ano em que entrou em domínio público. Ignorá-lo seria uma demonstração de total cegueira ao que me rodeia, num adormecimento e automatismo que o quotidiano nos tenta impôr, o qual devemos combater com o máximo de consciência possível. 

E foi hoje que li algo do livro que me fez recuar precisamente ao momento em que me apaziguei com a chefia agressora, como disse no início:

"Um dia destes, pensou Winston com súbita e profunda convicção, Syme vai ser vaporizado. É demasiado inteligente. Vê as coisas com excessiva lucidez e fala com excessiva franqueza. O Partido não gosta de gente assim. Um dia destes ele vai desaparecer. Está-lhe escrito na cara."

Eis o medo e o seu resultado.

Todos nós ainda mantemos instintos básicos, primitivos. Não obstante sermos racionais, somos animais. Temos uma raiz primária. Perante uma ameaça, temos três possibilidades de reacção: o ataque, a fuga ou o paralisar. Na maioria, em fracção de segundos, conseguimos determinar qual a melhor opção para um contexto específico. Porém, há perfis que se inclinam para uma reacção constante: por exemplo, os bullies optam pelo ataque. Não esqueçamos, contudo, que, por trás, há medo, muito medo. Só não querem mostrar a sua fragilidade.

Ao ler este parágrafo de 1984 vi a descrição de alguém que pensa fora da caixa. Há um partido que quer pessoas mansas, que não dêem nas vistas, que não dêem luta, permissivas; alguém inteligente, lúcido e franco será considerado pelo sistema, mais tarde ou mais cedo, uma ameaça. O medo de ter alguém que diga a verdade falará mais alto, provocando uma das reacções básicas: não estou a ver o partido a fugir, nem a paralisar...

Através destas linhas de Orwell, senti uma afinidade. Sei que sou do contra, sou uma herege. O horror!!! (imaginem um emoji, qual seria?) Obviamente, não o faço só porque sim ou teria aqui algum grau de perversão, porque isto de não se ir com o rebanho custa muito, dói e é solitário. Seria tudo muito mais fácil se concordasse com a maioria, se dissesse sim a tudo, se aceitasse os discursos bonitos sem reflexão e pesquisa. Só que, desse modo, estaria a rumar contra a minha natureza. E nesta questão não quero ser do contra (mas ao não querer não estou já a sê-lo?! Filosofias...).

No contexto onde fui vítima de assédio laboral, mais especificamente moral, tive medo. A minha primeira reacção foi paralisar. Tal leva-nos a um estado de turpor que nos vai mantendo, não se pensa muito, entra-se em piloto automático, a confusão é muita, o alerta é constante. Senti-me em estado de choque. Cheguei a ter momentos de possível fuga, tentando outros locais de trabalho (para tal, teria que sair da Função Pública, tal era o desespero, porque, estando em mobilidade, ainda não me era possível pedir mudança para outro local).

Posteriormente, com o adensar dos ataques, também eu me defendi de outra forma enfrentando: não fugi, nem paralisei e disse frontalmente o que senti em todo aquele processo. Naquele momento, vi o medo no olhar da minha agressora, o medo de estar a ouvir o que não queria ouvir - a Verdade. Naquele instante, fiquei muito confusa, não compreendi uma série de coisas. Hoje compreendo que o medo sempre esteve lá, porque, de alguma forma, ela detectou a diferença de postura em mim. Eu era uma ameaça para a insegurança dela. O disfarce é o ponto forte dos bullies, até lhes cair a máscara. Ao vê-la frágil poderia ter atacado em força. Teria ali o momento para a "estocada final". Instintivamente, recordo-me da Ética de Harry Potter, exemplarmente explicada por Emília Ferreira numa palestra a que assisti e, sobretudo, da frase da radialista Inês Maria Meneses "Somos mais do que as nossas circunstâncias". Naquele momento, escolhi outro caminho: não sendo bully, optei pela compaixão diante de uma pessoa que percebi estar cheia de problemas e a repetir padrões errados desde há muito. Uma pessoa resistente à mudança de comportamento e com demonstração de aparente incompetência emocional. Senti-me em paz e perdoei. Claro que não se esquece e não quero mais nada com essa pessoa (até quero um ponto final, mas, lá está, o sistema, sempre o sistema, não ajuda...), só que, como disse muito sabiamente o meu irmão "quando perdoamos é para fazer bem a nós mesmos". 

Agora, com algumas leituras (a importância do conhecimento...!) e maior clareza, este parágrafo de 1984 faz-me retomar o tema das lideranças tão pouco preparadas que temos. São lideranças inseguras, sem conhecimento do terreno/realidade (quantos é que vemos a falar com os técnicos, a perguntar o que eles acham, a estar na linha da frente para conhecer e arranjar soluções?...), amedrontadas por alguém que lhes venha estragar a ficção que querem forçosamente manter. Se confrontados com alguém que lhes possa dar sinais do que é a realidade, atacam. Como a maioria está formatada para calar, os "desviantes" são "vaporizados". Ou, sem ficção, se sentir que está a ser continuamente silenciado, diminuído ou posto de parte, está a ser assediado moralmente.

Acredito que o livro 1984 me ensinará ainda muito mais e outras metáforas extraordinárias surgirão. Basta estarmos atentos.

Força e Saúde!

Alexandra Marques



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Violência

Notícias sobre experiências de violência

Notícias sobre experiências de violência